A BREVE INTERRUPÇÃO DO FIM
GERALD THOMAS
HAROLDO, PRA MIM, ERA TUDO. OU MELHOR,
minto. Ele era muito mais que isso, pois “tudo” não quer dizer nada. Desde os meus
13 anos, quando eu perambulava aqui em Nova York com Hélio Oiticica, já ouvia falar
dele e me interessava pela sua poesia concreta. Achava aquilo fascinante. Junto com os
“ready-mades” de Duchamp e as pinturas deformadas de Francis Bacon, a arte vinda da
Factory de Warhol e a música de Wagner, Hendrix, eu encontrava na poesia concreta de
Haroldo de Campos a “resolução” de toda essa estranha equação que eu entendia ser o
mundo (ou enigma, sei lá) ou fragmento ou estilhaço que somente depois de adulto eu
consegui entender como sendo a consciência humana.
Eu havia lido – se não me engano – um ensaio de Guy Brett (na época crítico de
arte do Times de Londres) sobre a arte contemporânea e Haroldo de Campos era citado
junto com seu irmão, Augusto. Além do que, Hélio Oiticica e Waly Salomão não paravam
de falar sobre Haroldo e Augusto de Campos como se fossem os representantes
de deus na terra.
Pra mim, uma criança daquela idade – precoce ou não – formada por Ivan Serpa
e louca pela vanguarda, a idade pedia “role models”, a figura do pai, a figura do deus
humano, e Haroldo de Campos, de tanto ouvir falar dele e de tanto ler seus poemas, virou
isso: o meu deus andarilho.
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Tanto no Brasil quanto aqui em Nova York, os irmãos Campos sempre estiveram
na minha mira, mas fora do meu alcance. Com meus parcos 13 anos de idade, não havia
motivo e nem desculpas ou pretexto pra chegar até eles. Mas eu morria de vontade.
E o fascínio continuou, cresceu através dos tempos.
Pausa monumental. Passam-se 20 anos.
Pausa para ler o que escrevi até agora. O tempo fictício de escrever algo abstrato
sobre alguém muito amado num número determinado de horas se choca com a dor real
de ter perdido essa pessoa PRA SEMPRE.
Caramba! Como continuar? Algo em mim diz que é impossível descrever “realmente”
o Haroldo de Campos que eu conheci tão intimamente, de que fui amigo, cúmplice,
companheiro de trabalho e a vontade que dá é a de pedir desculpas ao Jacó Guinsburg
(uma outra paixão em minha vida) e jogar a toalha. A tarefa é simplesmente grande
demais.
Mas posso tentar não desistir, afinal, sou discípulo, por assim dizer, de Samuel
Beckett, cujos motes são famosos. Entre eles “Não posso continuar. Preciso continuar”.
Ou “Falhar. Falhar de novo. Falhar melhor”. Então, usando da minha convivência com
Beckett no início dos anos oitenta em Paris, vou honrar o compromisso e tentar – da
melhor forma possível – descrever “quem” foi Haroldo de Campos pra mim, ou melhor.
Quem foi “Sir Haroldo de Campos” para um jovem autor e diretor de teatro, cuja vida
inteira foi influenciada por sua obra, inspirada nela, iluminada por ela, essa vasta obra
que se ramificava em tantas e – contraditoriamente juntava todos os ramos e galhos e os
amarrava criando tronco e raízes fortíssimas de onde brotavam idéias tão incrivelmente
originais que os queixos caiam e criadores alertas em todos os cantos do Brasil e do
mundo se inspiravam e suas vidas mudavam e estavam mudadas pra sempre depois de
Haroldo de Campos.
Faz sentido o que digo?
Não me importo. Estou emocionado e, sinceramente, não quero revisor, copydeskeiro
nenhum me corrigindo. Afinal, acho que nunca sofri tanto quanto nesse ano
que passou com a falta desse homem nesse planeta. Mesmo passando alguns meses sem
vê-lo, sempre sabia que ele estava lá, em Perdizes, tinha notícias dele através de Jacó e
Gita, não queria incomodá-lo em seus períodos “down” que eu sabia serem terríveis.
Mas vamos aos fatos. Onde eu estava? Ah sim, nos meus 13 anos e sem acesso a
ele. Bem, as coisas mudam radicalmente quando...
Décadas depois, já estabelecido como “um nome internacional de teatro”, mais ou
menos especializado em montar premieres mundiais de textos de Samuel Beckett no La
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MaMa etc, eu resolvi escrever uma peça especialmente dedicada aos poetas concretos,
com a Cia de Ópera Seca brasileira – Eletra ComCreta – na esperança de que eles fossem
atraídos pelo título e.....bem, a partir disso, pudéssemos, sei lá... começar uma discussão,
amizade, qualquer coisa.
O espetáculo ficou mais de um ano em cartaz e nenhum dos três (Haroldo, Augusto
ou Décio) apareceu. Dei o caso por perdido. Pelo menos fomos sucesso de público.
Inexplicavelmente, até hoje é um dos espetáculos que o público mais comenta. Pode ser
que Haroldo não o tenha visto. Mas como foi tão fortemente inspirado nele, tenho a
fortíssima certeza de que – de certa maneira – algo ali foi “decalcado” dele e se infiltrou
no espetáculo. Se é que houve algo de genial naquele espetáculo (e muitos disseram que
houve), talvez aquilo pudesse ser atribuído a ele e não a mim. Sim, muitas coisas não se
explicam. Essa é uma delas.
Mesmo assim fiquei triste dele não ter visto Eletra ComCreta – pois Haroldo era essa
referência monumental e transbundantemente gigantesca em minha vida (além do mais
tínhamos paixões em comum como Joyce, Goethe, Pound e minha relação pessoal com
Beckett, pensei eu, poderia lhe interessar...).
Mas o acaso é justo! No ano seguinte, em 1987, quando montei Trilogia Kafka, recebo
um telefonema da bilheteria de que Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman e Jacó
Guinsburg estavam lá em cima e veriam aquela sessão. Meus joelhos tremeram como se
fosse a minha estréia, a minha passagem do amadorismo pro teatro profissional.
Nunca mais nos desgrudamos. Foi uma coisa inexplicável (as melhores e mais
fortes coisas do universo ou das galáxias são inexplicáveis). Nos falávamos sempre. Ele
voltava e voltava pra ver as peças. Escrevia sobre elas. Queria saber sobre cada detalhe
do texto e de como cheguei à idéia dessa e daquela cena. E a música. E a luz. E ficava
fascinado com os atores. Ficou íntimo do elenco. Eu o visitava (e a Carmen) em sua
casinha em Perdizes com enorme freqüência. E lá, parecíamos duas pilhas fora de controle,
um falando paralelamente ao outro. Não havia granada que nos parasse. Nos
encontrávamos com muita freqüência (nos últimos tempos) no apartamento do Jacó
e Gita Guinsburg.
A cada artigo seu a respeito de um espetáculo meu, as lágrimas caiam. Aquilo não
podia ser verdade. Um ano antes, afinal, eu ainda tentava atraí-lo com Eletra ComCreta
e... agora, ele escrevia com uma euforia contagiante sobre a minha obra. Meu deus. O
que fazer disso tudo? E tinha mais. Jacó estava preparando, através de sua editora, a
Perspectiva, uma edição sobre o meu trabalho no teatro. A “curadoria” seria do Haroldo.
A enxurrada de emoções não parava.
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No entanto sou amargo. Meus contemporâneos não são generosos (existem excessões,
claro) a ponto de admitirem o quanto (digo, o QUANTO) Haroldo de Campos foi
sua maior influência. Muitos cantam seus versos. Outros o vertem em seus cantos e o
transformam ou o transgridem, mas não o citam e nem o agradecem. O cerne da genialidade
reside justamente em admitir as influências. E o fato é que Haroldo de Campos
influenciou DUAS ou TRÊS gerações de CRIADORES! Mas poucos têm a humildade de repetir
seu nome ou de lhe prestar as homenagens diárias, horárias que ele merece.
De fato: sem sua existência, e a de sua obra, não seríamos nada. E esse nada é o
oposto de tudo, não estou fazendo jogos semânticos nem brincadeiras metalingüísticas.
Graças a Haroldo de Campos, a arte brasileira é moderna. E isso não é dizer pouco.
Mas parece que isso não foi o suficiente: Haroldo de Campos nunca mereceu o tratamento
“oficial” que um, digamos, Jorge Luis Borges, recebeu em sua Argentina ou um
Octavio Paz recebe no México e me pergunto porque. Por que?
Sua obra é internacionalmente conhecida. Vi e testemunhei isso na Alemanha, na
França, na Itália e aqui, em Harvard e em New York University na Columbia University.
Desde Umberto Eco até Jacques Derrida, os endossos e as venerações vinham de todas as
partes. Mas e o Brasil? Por que a resistência? Por que as briguinhas mesquinhas?
Quando saíamos pra jantar, às vezes essa amargura ficava aparente sob a torrente
de trocadilhos que trocavamos noite adentro. Com o passar dos anos, sua fragilidade ficou
mais transparente e assim ficou sua terrível depressão e diabetes. Às vezes falávamos
sobre isso, às vezes ele chegava a discursar sobre isso. E, às vezes, a depressão fazia com
que sumisse por meses a fio.
Viramos confidentes. Falávamos (atropeladamente) sobre tudo, desde as várias fases
de Goethe até o Panaroma de Finnegan’s Wake (eu insistia em que a dupla terminasse a
jornada da transcriação). Celebrávamos Bloomsday nos vários pubs Finnegans da cidade
(com Giulia Gam e Bete Coelho – do meu elenco) e líamos e nos divertíamos com as mais
infames piadas e os piores trocadilhos.
Sua morte foi um dos maiores choques que já recebi. Principalmente porque eu
não havia sido informado de nenhuma internação, de nenhuma enfermidade. E foi na
tarde da estréia de Tristão e Isolda no Municipal do Rio, justamente essa produção que me
trouxe tantos problemas.
Acho que, no fundo, abaixei as calças e mostrei a bunda no final, pois estava em
tamanho estado de stress com a notícia da morte de Haroldo, que não soube reagir às
vaias e aos xingamentos anti-semitas que me eram berrados.
Mas tenho muito orgulho em ter levado pro palco, ainda que imperfeitamente, um
texto inédito seu, escrito dois anos antes do meu nascimento, ou seja, em 1952 – “Graal,
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O Retrato de um Fausto quando Jovem”. Além disso, no mesmo ano, usei enormes trechos
de Galáxias numa coreografia que fiz para um grupo de dança de Belo Horizonte, o
Primeiro Ato. Aquele trabalho chamava-se A Breve Interrupção do Fim.
A morte de Haroldo parece, até hoje, quase um ano depois, justamente, uma breve
interrupção do fim. No Blog que mantenho no UOL, Ana Peluso e eu (minha fiel parceira
de Blog e excelente poeta) publicamos poemas dele constantemente, fazemos referências
a ele pois sei que o Brasil tem a memória curta e sei que vivemos uma era horrivelmente
frívola, uma era em que Haroldo talvez fosse cada vez mais infeliz.
A experiência de ter montado Graal foi estupenda. Haroldo estava décadas, talvez
meio século na frente do seu tempo. Ele ia ao Rio visitar os ensaios a cada duas semanas e
confesso que eu não sabia muito bem o que ler em suas reações faciais. Ele andava muito
cansado. Jantávamos no Lama’s (ele adorava a fritada de camarão, que devorava) e eu o
deixava em seu hotel preferido, o Hotel OK, na Senador Dantas.
Eu estava mais do que cansado de saber da diabetes. Mas algo de diabólico em nó,
nos torna cúmplices no crime. Eu sabia que ele não podia comer tanto e não podia tomar
vinho. Mas, longe de São Paulo, era farra. E como amigo era meu dever agir como “policial”.
Mas como fazer isso? Impossível. A gente se torna automaticamente cúmplice no
crime e, não somente libera geral, como ri de tudo e a decadência toma conta. Não tenho
dúvidas de que, quando saí do ar do RJ-TV, na tarde da estréia de Tristão e Isolda, e me
contaram que Haroldo havia morrido, a primeira imagem que me veio à cabeça, foram
as várias “farras” que cometemos juntos e que – com seu estado debilitado – eu jamais
deveria ter permitido. Mas evidentemente não fui o único.
Voltando a Graal: seu texto, evidentemente, não era pra ser falado por atores treinados
pelo método stanislawskiano. Lembro-me de “importar” de São Paulo (os atores
eram alunos formandos da CAL, mais a Bete Coelho no papel principal) o dramaturgista
(hoje crítico da Folha de S Paulo, Sergio Salvia Coelho), para explicar ao elenco que aquelas
falas não eram “frases cotidianas” e, portanto, a ênfase, o coro, os gestos podiam ser
tudo, menos “normais” ou coloquiais.
Pois, acho que a produção não levantou e não alcançou o ponto desejado justamente
porque os meninos não entenderam o que queria dizer aquele aglomerado de palavras
e não entendiam o Haroldo visto por Goethe (e vice-versa) e não entendiam a brincadeira
metalingüística com o Retrato de um Artista quando Jovem de James Joyce. Em última
instância, a culpa seria minha que, como diretor do espetáculo, não conseguiu transmitir
toda aquela rede de informações para o elenco e, ultimately, para o público.
Haroldo ficava na platéia vendo os ensaios, mas acho que se sentia encabulado
demais pra criticar. Sonhava em ver o coro dos anjos voando (coisa que num teatro é
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tecnicamente difícil e estávamos operando com um orçamento mínimo), sonhava em ver
as cenas montadas que havia sonhado. Mas aquilo não era possível. E esse era o grande
paradoxo. O teatro é concreto. E aqui estávamos nós com o pai da poesia concreta, óbvia
e visivelmente decepcionado em não ver realizado cenas altamente lúdicas e praticamente,
concretamente irrealizáveis.
Conversamos como contornar o problema. Mas Haroldo, depois de alguns jantares
me parecia resolvido com a produção. Preferia que acontecesse do jeito que estava. “Melhor
fazer do que não fazer”, e terminava com uma convincente gargalhada. E sugeria
uma batucada, um samba pro final. E assim foi feito.
Graal tratava de um ser mítico e era uma peça mítica-romântica. Porém, já desconstruída
e, em vários momentos extremamente “concreta”, causou “problemas” já que
o elenco era praticamente amador. Mas para a Bete e eu, foi um orgasmo, um delírio,
uma delícia que eu repetiria hoje, amanhã e a semana que vem.
Mas é compreensível que o público tenha dificuldades com esse tipo de teatro impopular.
É sempre bom e saudável lembrar que, quando Esperando Godot estreou em Paris,
dirigido por Roget Blin, no Studio de Paris para uma platéia de 70 pessoas, 35 saíram no
intervalo. E quando, quatro anos após a estréia na França, ela teve sua estréia aqui nos
EUA, Walter Kerr, o crítico do New York Times, a derrubou, argumentando que se tratava
de algo em que “nada acontece, em dois atos”. Kerr, 25 anos depois, renunciou como
crítico. E em sua renúncia, dizia que achava Esperando Godot a maior obra de arte do
século XX. Admitiu ter errado profundamente e admitiu que provavelmente arruinou a
vida de centenas de artistas.
Sinto que Haroldo de Campos já deveria fazer parte “oficial” da História literária
brasileira. Mas ainda sinto que existe alguma resistência quando o nome dos irmãos é
pronunciado. A poesia concreta é uma fase e existe como tal no passado desse País, uma
fase gloriosa.
Nas últimas décadas, Haroldo já estava traduzindo obra de sete diferentes idiomas,
um estudioso sem precedentes no Brasil e, mesmo assim, nunca conseguiu se livrar do
“stigma” da poesia concreta. Lembro-me de um dia muito peculiar...um dia em que
recebeu uma tradução alemã de Finnegan´s Wake, um verdadeiro monstro, algo que pesava,
tranqüilamente, sete kilos. Nós conferíamos juntos página por página e tínhamos
momentos de êxtase, pois o tradutor (esqueço o nome) havia conseguido o inconseguível
(segundo Haroldo). Muito orgulhoso por ter conseguido um exemplar entre somente
quinhentos impresssos (e o conseguiu pela internet), ele o exibia como se fosse o velho
testamento. Essas memórias são sagradas e me fazem lembrar os melhores e mais preciosos
momentos da minha vida.
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Não estou conseguindo escrever esse texto sem lágrimas nos olhos, sem uma pedra
na garganta. Só em pensar que não o verei mais, que ele não abrirá mais aquela portinha
de ferro em sua casinha em Perdizes... chega. Acho que basta. Haroldo era um lutador,
um ser mefistofáustico que adorava mostrar o punho. Ele iria detestar um idiota romântico
como eu derramando lágrimas (mal sabe ele quantas já derramei).
Vou terminar esse texto plagiando Derrida que escreveu sobre Haroldo de Campos
uma das coisas mais doces e sinceras: “Quando eu crescer, quero ser você!”
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