FOLHA DE SAO PAULO, Mar 11, 2004
Os Estados Desunidos da mente
Gerald Thomas volta ao palco do La MaMa, teatro de NY onde começou a carreira em 1984
By CONTARDO CALLIGARIS
Há mais de quatro décadas, o
La MaMa, no East Village
de Manhattan, é o templo nova-iorquino do teatro experimental.
No sábado passado, no La MaMa, estreou uma peça escrita e dirigida por Gerald Thomas: "Anchor Pectoris, The United States of
the Mind" (Anchor Pectoris, os
Estados Unidos da Mente).
A expressão conhecida é "angina pectoris": designa uma dor
violenta e opressiva atrás do esterno, que nos aflige quando o
oxigênio que chega ao coração é
insuficiente. "Anchor pectoris",
uma âncora no peito, é uma boa
metáfora: evoca o sofrimento
(uma espécie de facada no coração e um peso que, esmagando-nos, impede a respiração), mas
também, paradoxalmente, promete uma cura. Afinal, estamos
(ou somos) todos um pouco perdidos, navegando à deriva: lamentamos o porto seguro do qual saímos um dia e sonhamos com uma
âncora que possa nos prender a
um lugar ou a uma idéia certa e
clara.
A peça nasceu como um "tour
de force". Gerald Thomas, de passagem por Nova York em janeiro,
visitou Ellen Stewart, a diretora
artística do La MaMa. E Ellen, de
repente, lhe propôs de montar e
encenar um espetáculo em 30
dias.
O resultado é intenso, engraçado e tocante: o diretor nos apresenta a atual encruzilhada de sua
vida num instantâneo que é também um inventário tragicômico
da subjetividade contemporânea.
Como personagens de Beckett,
erramos por um terreno baldio,
em que circulam lembranças,
pensamentos, esperanças e fragmentos obcecantes de discursos
políticos vazios (os de George W.
Bush, no caso). A musa que poderia nos inspirar (surpreendente
Fabiana Guglielmetti) ora parece
morta, ora dança zombando da
gente. Stephen Nisbet e Tom Walker são os (ótimos) atores que encarnam o próprio Gerald Thomas. Há um momento em que
Nisbet pergunta: será que alguém
encontrará o tempo para juntar a
sucata em que se partiu nossa
subjetividade? E será que valeria
a pena? O ator, nessa hora, se parece com um boneco que tivesse
desmontado a si mesmo para
compreender melhor seu funcionamento e, então, perplexo no
meio de um quebra-cabeça de
braços e pernas, não encontrasse
mais o jeito de se reconstruir.
Surge a tentação de juntar-se ao
coro das viúvas do "Meu Deus,
que horror, tudo o que é sólido se
desmancha no ar". É fácil ser
mais uma voz chorando o fim dos
ideais, do claro sentido da história, do respeito absoluto pelos
mestres etc.
Cuidado: certo, o boneco pós-moderno não consegue rejuntar a
sucata em que foi transformado
por sua própria curiosidade, no
entanto ele oferece algumas compensações. Ele é capaz, por exemplo, de escrever a peça de Gerald
Thomas, ou seja, de se enxergar
com lucidez e ironia atormentadas. Você acha que essa qualidade não levanta pirâmides nem redige sistemas filosóficos? Pode ser.
Mas é a qualidade crucial para
aqueles que querem (e ousam)
mudar.
Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos é "The
Protean Self, Human Resilience
in an Age of Fragmentation" (O
Sujeito Protéico, a Resistência
Humana numa Época de Fragmentação), de Robert Jay Lifton,
o grande psicanalista e psiquiatra
americano que escreveu sobre a
Guerra do Vietnã, as conseqüências psíquicas da ameaça nuclear
etc. Protéico, no título, não tem
nada a ver com as proteínas; é
uma referência a Proteus, um
deus da mitologia grega que tinha a faculdade de adotar infinitas formas diferentes (de leão, de
serpente, de árvore e mesmo de
água), sobretudo para evitar que
fosse encurralado e obrigado a
responder a perguntas sobre o
passado e o futuro (sendo que sobre ambos ele sabia mais do que
queria dizer). Proteus é o padroeiro das mudanças.
Entre os mil ensaios sobre a pós-modernidade e a subjetividade
contemporânea, "The Protean
Self", publicado em 1993, é um
dos poucos que não se resumem
num lamento da consistência
perdida. Para Lifton, a novidade
pós-moderna é que, claro, vivemos num mundo inquietante,
fluido e múltiplo, mas a contrapartida positiva dessa inconsistência é a extraordinária e constante possibilidade de nos outorgar segundas, terceiras e quartas
chances.
O sujeito contemporâneo é um
imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade
paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito da espécie. Essas
perdas nos definem e nos mantêm
num luto constante, mas elas são
as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade,
inédita e gloriosa, de mudança.
Quem não tem país, não tem pai e
não conta com a eternidade atreve-se facilmente a transformar
radicalmente sua vida.
Para Lifton, a subjetividade
contemporânea é uma agonia
que acarreta seu próprio remédio:
a experiência do desamparo é a
mola de nossas reinvenções.
É a época sonhada por qualquer terapeuta: nunca houve tanto sofrimento para curar, mas
também nunca houve tanta possibilidade de curar, pois nunca
houve tanta disponibilidade para
mudar.
É também uma boa época para
pensar, pois é permitido (ou mesmo encorajado) descuidar autoridades e doutrinas para aceitar as
incoerências que são impostas pela realidade.
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